Aos 33 repeti a amarga experiência do luto. Sim, também houve momentos de profunda tristeza neste ano que termina.
O preto é, por defeito cultural, a cor escolhida para representar a perda, a ausência de alguém que não mais volta… Para mim, não. Para mim, a cor do luto é o branco: a total imensidão, ao mesmo tempo que acalma, que sossega, que transmite paz. Como esta fotografia da nuvens, daquilo que existe acima de nós, do que não conseguimos ver nem é, sequer, palpável. E isso também faz parte do processo.
Recupero o que escrevi no final de 2017:
“Os 33 levaram-me uma pessoa que amo. E nunca vou deixar de amar. Um pessoa que me ensinou o sentido da família, que me ensinou a amar mesmo quando não é tudo perfeito. A falta é brutal, mesmo à distância… a falta é brutal. O amor pode ter várias formas. A distância física é muito pouco quando se ama alguém que foi um exemplo para nós. E que, sabemos, nos amava de volta. Mas não quero ficar na perda… Quero celebrar a sua vida. A imensa gratidão de o ter tido comigo 33 anos, de me ter dado nome, de me ter embalado e baptizado. As lições que deu. O dever que cumpriu. O olhar meigo, a bondade, o discernimento, a inteligência… Sim, era o mais inteligente de todos nós. As salvas no seu funeral que ainda hoje ecoam na minha cabeça lembram-me isto tudo”.
E sobre isto, não pretendo dizer mais nada. Não posso, mesmo, dizer mais nada. Porque eu ainda não fiz este luto e não sei se o conseguirei fazer.
Mas, infelizmente, os 33 levaram-me outra pessoa, talvez um dos primeiros responsáveis por aquilo que sou hoje. No seu funeral li-lhe uma pequena homenagem. Quando terminei, choravam todos menos eu, que não podia. O meu professor de História e Geografia de Portugal, Emílio Serra, cego, um homem FABULOSO. Pediram-me para partilhar o texto e hesitei sempre… agora é o momento.
“Querido amigo, a primeira coisa que lhe quero dizer é ‘desculpe’.
Por não ter chegado a tempo. Soube há poucas semanas que estava doente e a vida que me incentivou a seguir não deixa tempo para muito. Ou para quase nada.
E se aqui estou é por sua causa. Essa é a segunda coisa que lhe quero dizer. Há mais de 20 anos levou-me a um estúdio de rádio… Tudo começou aí, nessa segunda feira na Rádio Tágide, o programa chamava-se ‘Letras Sonoras’. O resto da história já sabemos.
Consigo ouvir agora a sua bengala a bater na tijoleira das escadas do bloco onde tínhamos aula. A sala 7, se não me falha a memória, era a sua. Nós, miúdos, nem conseguíamos perceber como lia braille. Foi das primeiras lições que nos deu. Mas houve mais: Ensinou-nós a ir contra a corrente quando dinamizou uma escola, levantou um grupo de teatro e o fez resistir várias décadas. Mostrou o que era a resiliência quando contou a história de uma namorada com quem não casou poque os pais imploraram pela alma do irmão que não casasse com um homem cego.
Era isso que o tornava especial. O facto de lhe faltar um sentido apurava todos os outros e também nos fez perceber isso. Era um profundo conhecedor de todas as matérias. Figura pouco consensual, aliás nunca o ouvi dizer que queria agradar a todos… sabia bem que esse era o caminho para o fracasso.
Poucas coisas o emocionavam como uma estreia de uma peça de teatro ou uma conversa em torno de uma mesa. Obrigada por nos ter dado também essa experiência, de uma riqueza imensa e que hoje ainda todos recordamos.
Fomos amigos 23 anos. E mesmo não estando juntos muitas vezes sei que nos compreendíamos como poucos.
Obrigada por ter sido o primeiro a acreditar em mim e naquilo que eu sou hoje, pelas mensagens no natal, e pela companhia de manhã.
Até sempre”.
Texto lindo, homenagem sentida revela a grande personalidade é um ser humano excepcional.Bem ajas